domingo, 12 de março de 2023

Conversas imaginárias com meu pai: cenário

 Conversas imaginárias com meu pai: cenário



O dia em que meu pai levantou uma questão de ordem, ou seja, para prosseguir o debate era necessário antes tentar definir alguns conceitos.


“O que temos para hoje, meu filho”, já foi meu pai indagando tão logo me avistou. “Fome e garganta seca”, respondi de pronto. “Para a garganta tenho um remédio de primeira, a fome pode esperar”, respondeu meu pai. Entendi a sutileza nas entrelinhas. Servi dois martelinhos com aquela pinga que ele ganhou do Papaca. Estava então montado o cenário para nossas conversas.


“Para hoje, meu filho, você tem fome de quê?”.  “Para hoje, meu pai, tenho fome de… justiça social”. Ele então olhou demoradamente para a janela entreaberta. De onde estávamos, com a claridade que vinha da rua, era possível apreciar a beleza dos pessegueiros em flor. Uma imagem simbólica que jaz gravada nos lugares mais belos de minha memória.


“Mas depende do conceito de justiça, disse ele, pois para aquele antigo filósofo grego, um tal de Trasímaco*, justiça nada mais é do que a vontade do mais forte”.


Percebi que a conversa caminhava para um terreno abstrato, de novo, e prometia ser longa, então me ocorreu uma ideia: “posso servir mais 2 pila dessa sua pinga?, tá muito boa”, perguntei.



Final de outono, pessegueiros formando flores, Urubici, 8 de maio de 2020.


Charles



Fonte: 


Trasímaco


https://pt.wikipedia.org/wiki/Tras%C3%ADmaco


Conversas imaginárias com meu pai: querido diário

 Conversas imaginárias com meu pai: querido diário



O dia em que meu pai acessou o meu diário imaginário. Ora, supunha que isso seria impossível, tal diário é ultrassecreto e nem existe fisicamente.


Amanhecia mais um dia. Era preciso decidir se naquele dia iria olhar a parte vazia ou a parte cheia do copo. É uma escolha. Como já disse alguém, somos livres para fazer nossas escolhas, mas prisioneiros de suas consequências.  


Ernest Hemingway já disse que a companhia com quem você está numa trincheira é mais importante do que a própria guerra. Mil interpretações serão possíveis, querido diário. Na hora que você mais precisa, aí que você conhecerá verdadeiramente sua companhia na trincheira. 


13/06/2020 - ainda falta a razão de ser


O dia em que o pai acessou o meu diário imaginário. Sobre a finitude, “mas não me venham com gracinhas”.


Era uma noite de lua cheia. Havia saído da casa do pai e algo me deixou preocupado. A minha preocupação era com a finitude. Eu percebi que o pai apresentou algumas falhas de memória, percebi que estava se desligando perigosamente das coisas mundanas. 


Ernest Hemingway já disse que a companhia com quem você está numa trincheira é mais importante do que a própria guerra. Nessa fase da vida dele, a companhia realmente importava, ele estava se despedindo dela.


(i) Sobre a finitude, o melhor caminho é conversar. 




(Pai) Eu reconheço a conversa de vocês, me sinto mal-e-mal vivo, por isso vou fazer um pedido para você, meu filho. Escreva em minha lápide o seguinte epitáfio: “Para este frio não há cobertor”. Eu sei o autor dessa frase, e você?


“Não sei como o senhor acessou meu diário imaginário, mas prometo cumprir seu pedido. É o tipo de promessa que, se eu não cumprir, o senhor não poderá me cobrar”. “Muito engraçado, mas lembre que eu estarei mal-e-mal morto. De fato, a morte a todos iguala. Tão logo os sinais vitais desligam, o primeiro verme começa invadir nosso corpo sem vida. E logo tudo isso que somos não passará de apenas um punhado de pó. A morte é uma condição da existência. Se a morte a todos iguala  e sobre ela nada podemos fazer, mas durante a vida é a desigualdade que está naturalizada. Essa desigualdade é uma construção social, e como tal pode ser desconstruída. Sobre essa, sim, podemos fazer alguma coisa”.



Olhei mais uma vez para o céu. Percebi que ao lado daquela caprichosa lua cheia havia um ponto luminoso. Não é uma estrela, como possa parecer, é Júpiter, um planeta. A diferença entre uma estrela e um planeta é que a primeira é cintilante. Isso significa que quando uma pessoa morre e vira estrela ela fica cintilante lá no céu?

Quietos, agora preciso dormir.


Conversas imaginárias com meu pai: o caminho da aprendizagem

 Conversas imaginárias com meu pai


Um pequeno retângulo verde para dividir as seções do documento

O caminho da aprendizagem

Um pequeno retângulo verde para dividir as seções do documento


Lembro-me que trabalhava na oficina de chapeação do Hélio, meu cunhado.  Devia estar entre 16 ou 17 anos de idade, por aí.

Um pequeno retângulo verde para dividir as seções do documento


“Conte-me sobre seu trabalho”, perguntou meu pai. “Estou lá trabalhando na oficina de chapeação do Crespo, aprendendo a fazer as coisas. Eu gosto mesmo é de pintar, mas até agora ele só me colocou a pintar o fundo, eu queria mesmo era pintar a tinta definitiva, mas essa atividade é só para ele ou para o sócio dele”. “O que é esse fundo”, perguntou. “É uma base de tinta,  uma pré-pintura, que, depois de aplicado, a gente ainda lixa e repara os escorridos e prepara para a tinta definitiva”, disse.

“Filho, você precisa ter calma. Pelo que entendi, esse fundo é uma aplicação de tinta preparativa para a pintura definitiva, que se escorrer ainda pode ser lixado. Na tinta definitiva não tem essa possibilidade, não é verdade? Certamente seu patrão viu que você ainda está aprendendo, e o fundo é uma boa prática. Esse é o caminho da aprendizagem”. “Verdade, meu pai, de fato, não me sinto pronto para essa tarefa”.  “Apto, filho, apto para a pintura, pois pronto nem você e nem ninguém nunca fica. Pronto é um estado de perfeição inatingível. Sempre podemos melhorar em alguma coisa. Essa pintura de fundo é uma metáfora da aprendizagem”.  Dito isso, mudou completamente de assunto e falou: “Você precisa pesquisar sobre os anéis de Saturno”.  Então, abri os olhos, era mais uma conversa imaginária com o pai.

(Isabel, quer uma carona para os anéis de Saturno?)


De um ponto minúsculo do Universo, outono se despedindo, inverno se aproximando,  saindo com a Clau para uma longa caminhada, em 20 de junho de 2020.





Conversas imaginárias com meu pai: comunismo

 Conversas imaginárias com meu pai: comunismo



Correm os dias sempre iguais, embora sempre acreditamos que “amanhã será um outro dia”. É talvez uma espécie de vacina para continuarmos andando. 


Estava ali falando sozinho sobre questões filosóficas, as coisas práticas podem esperar, embora essa ordem das coisas traga alguns inconvenientes no dia a dia. Como quando coloquei sem perceber na geladeira… deixe pra lá.


Eureka! Tentava controlar a ansiedade na espera de que a noite logo chegasse, queria passar para o meu pai, de primeira mão, uma ideia que me ocorreu para resolver o caso da energia naquele nosso plano das viagens intergalácticas, o qual estava comprometido em razão de um fator: energia.


Em traços resumidos, seria o caso de mapear os asteroides que circulam em caminho elíptico no universo, pegar carona num deles, saltar para outro quando se aproximar do primeiro, de modo a andar em velocidades altíssimas, sem gastar energia(!), e ainda retardar o envelhecimento, já que a passagem do tempo é infinitamente menor em velocidades elevadas. Queria só ver a reação do meu pai quando lhe adiantasse tal plano!


“Que ventos o trazem aqui, filho”, exclamou meu pai, quando finalmente cheguei em sua casa naquela noite estrelada. “Ventos?, no espaço profundo não existe vento, meu pai!. “A la pucha!, volte já pra Terra, filho!, que história é essa de que o governo combate o comunismo? O que é ser comunista?”  Saberia me dizer?”.


“Ah, essa história de combate ao comunismo… Bem, meu pai, se defender a sustentabilidade do planeta é ser comunista, se lutar pela redução das desigualdades sociais é ser comunista, se lutar pela inclusão das minorias discriminadas e defender os direitos humanos é ser comunista, então eu também sou comunista!”.


Meu pai olhou para mim e disse o seguinte: “sendo assim, eu também sou comunista. As palavras importam e ajustam seu significado de acordo com os tempos. Quem um dia disse que “tudo que é sólido se desmancha no ar?”, mas me responda depois, agora eu quero saber sobre esse negócio de não existir vento no universo profundo, você por acaso já esteve lá para saber? Espere, não me responda agora, o jantar está na mesa”.



Dia do trabalhador, Urubici, maio de 2020.


Fonte:

https://exame.abril.com.br/ciencia/asteroide-gigante-vai-passar-perto-da-terra-amanha-29/


Conversas imaginárias com meu pai: a relatividade do tempo

 Conversas imaginárias com meu pai: a relatividade do tempo


Queria que aqueles momentos durassem para sempre, mas sei que isso é desejar o impossível, então que andassem mais devagar, pelo menos. Só que não, aqueles momentos transcorriam como se estivessem fugindo a galope de mim.


31 de maio de 2008, dia em que o pai pronunciou suas últimas palavras, mas não gostaria de agora tocar em tristezas.


***

A noite se aproximava, era um anoitecer diferente. As energias que fizeram de meu pai um octogenário quase eterno, agora, aos poucos, iam lhe abandonando de mansinho. Meu Pai estava cambaleante, via-se a peleja da vida contra a morte, em alguns momentos até parecia que sobreviveria. Após um longo silêncio, perguntei-lhe se por acaso não queria ouvir alguma música, alguma daquelas suas preferidas que tínhamos ouvido no dia anterior, entre elas, Dio Come Ti Amo e Esquilador, sobre esta última, comentou na ocasião que, quando moço, gostava de tocar em seu violão. "Não, respondeu (com o fio de voz que lhe restava), vocês são a melhor música". Naquela noite, Marilu e eu tivemos uma marcante conversa com nosso pai.


***


Lá fora, a dança de uma folha de outono em direção ao chão. No galho de outra árvore, uma flor rompe a película e se mostra ao mundo. A vida segue.


"Teria alguma recomendação, alguma coisa, para me dizer, meu pai?", perguntei. "Tenho, sim. Procure não deixar em segundo plano as coisas que julga importantes". "Alguma em especial?", perguntei. "Comece pela mais importante, que é praticar gentilezas. Um simples ato seu pode ser a melhor música para o outro".


Um sábado de sol, uma parte da natureza se prepara para hibernar, outra parte, desafiando os rigores da estação,  se prepara para florir, Urubici, 30 de maio de 2020.



Charles 



Em tempo: Saindo para caminhar com minha esposa. Se tudo ocorrer como planejado, devemos partir da Serra do Corvo Branco até Aiurê, 28km, ida e volta.






Conversas imaginárias com meu pai: lavoura de arroz

 Conversas imaginárias com meu pai: lavoura de arroz



O dia em que meu pai discorreu sobre o fator experiência. 


Não sei ao certo de onde meu pai tirava suas ideias práticas. Essa tarefa vou deixar para meus irmãos: os mais novos têm a memória mais fresca, os mais velhos têm guardadas remotas lembranças. 


O fato é que houve um tempo em que o pai cultivava uma lavoura de arroz irrigado na comunidade de Marmeleiro, em São José do Ouro. O cultivo de arroz irrigado requer o domínio de algumas técnicas. Do contrário, demanda muito trabalho e a produção é um fracasso. A principal técnica é aproveitar o desnível do solo em favor do processo de irrigação. Ele soube implantar um sistema de irrigação que acabou dando muito certo, e fez daquilo, por certo tempo,  um meio de subsistência à sua família.


Ele certamente não tirou essas ideias do estudo de Guarda-Livros que fez em Passo Fundo, cujo diploma ostentou nas paredes das casas onde morávamos. De modo que tal curso de Guarda-Livros poderia ter sido muito útil na vida dele, menos para ensinar técnicas de cultivo em lavouras de arroz.


“Você está enganado, meu filho. Sua leitura é, digamos, deixe encontrar um termo suave para não melindrar o companheiro de conversas, apressada, para não dizer rasa ou superficial. Extrair o máximo dos mínimos recursos que tinha, enfrentar um lugar tão diferente do meu mundo, entre tantas experiências, durante minha estada em Passo Fundo, naquele tempo, cursando Guarda-Livros, foi uma experiência muito rica que você não faz ideia. Tais experiências que acumulei serviram para tudo que fiz desde então, até para a lavoura de arroz. Poderia ficar aqui discorrendo sobre esse tema 40 dias e quarenta noites, que é mui caro para mim, mas daí seria fazer como você: mudar as coisas de lugar, dizer que repaginou, mas os móveis são sempre os mesmos. Fui claro, meu filho?”. “Sim, muito claro, pai. Agradeço sua franca exposição, mas não precisava desenhar”. 


“Hoje falamos sobre lavoura de arroz, sobre meus estudos em bancos escolares, sobre experiências. Qual a lição, meu filho, que você leva da conversa desta noite?”, perguntou. Ele me tomou de surpresa. “A lição, meu pai, eu começo pegando sua fala inicial, quando o senhor diz: “você está enganado, meu filho”. De fato, a lição que fica é que devo, constantemente, repensar meus conceitos”.


A noite já havia avançado e era costume de meu pai dormir bem cedo. Uma coisa ficou pendente para outras ocasiões: “os móveis são sempre os mesmos”.



Urubici, 27 de maio de 2020.


Charles


Em tempo: Alguém sabe por onde anda o diploma de Guarda-Livros do pai?


Conversas imaginárias com meu pai: sobre a divisão justa

 Conversas imaginárias com meu pai: sobre a divisão justa


Existe a divisão aritmética, aquela em que simplesmente se divide em partes iguais o todo pelas partes envolvidas. Existe a divisão proporcional, aquela em que cada um leva sua parte segundo sua contribuição.  Existe a divisão justa, aquela em que  cada um contribui segundo suas aptidões e recebe segundo suas necessidades.


Então o leão, a onça e a raposa saíram para caçar, em parceria. Terminada a caça,  era chegada a hora da divisão. O leão segurou fortemente a raposa pela pata e a nomeou para efetuar a divisão. A raposa sentiu um calafrio no espinhaço. Esse leão está querendo me jantar, pensou. "Existem várias maneiras de dividir por 3 essa caça. Eu proponho a divisão 14, isto é, em 3 metades. A primeira metade, 50%, vai para o leão;  a segunda metade, 50%, vai para a onça; e a terceira metade, 0%, fica comigo". "Inteligente divisão, raposa", disse o leão.  E então foi aplaudir, largando, por instantes, a pata da raposa. Suficiente para a raposa fugir em disparada.


"Qual a moral dessa história, meu pai?", perguntei. "O critério de divisão é definido pelo lado mais forte, porém revestido de aparência democrática", disse ele. "E pra você, filho?", devolveu. "Pra mim, quando a vida está em risco, o critério de divisão pouco importa", falei. E meu pai: "Precisamos conversar sobre a tal divisão justa…".


Urubici,  25 de maio de 2020


Charles




Inspiração:


https://www.sitededicas.com.br/fabula-o-leao-o-asno-e-a-raposa.htm


Fonte:


https://pt.wikipedia.org/wiki/De_cada_qual%2C_segundo_sua_capacidade%3B_a_cada_qual%2C_segundo_suas_necessidades


Conversas imaginárias com meu pai: cenário

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